segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Uns e outros

Em Katmandu, quase não consegui dormir porque o casal do quarto ao lado discutia a relação aos berros. Em inglês, mas com sotaques diferentes: ele estava tendo um ataque de ciúmes e tinha uma voz tão autoritária e desagradável que tive de me segurar para não ir bater na porta e tomar satisfações. Como toda discussão de casal, esta também parecia um disco quebrado, e voltava sempre aos mesmos pontos. Tem graça atravessar o mundo e passar a noite acordada por conta de algo tão vulgar e sem sentido?

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Vi, por toda a parte, turistas da minha idade ou mais velhos, ou então bem novinhos, na casa dos 20. Faltava uma camada demográfica intermediária, e eu não entendia por quê, até os leitores do blog matarem a charada. “Estamos numa idade em que os filhos são pequenos e dificilmente conseguimos viajar fora do período de férias escolares”, escreveu a Luciana Betenson. “Além disso, muitos pais trabalham e ficam tão pouco tempo com as crianças que se sentem culpados de tirar férias e viajar sozinhos.” E a Márcia Amaral, que tem uma respeitável carreira acadêmica como física, complementou: “Pelo que observo por um monte de colegas minhas que seguiram carreira de pesquisa e optaram por não ter filhos, o trabalho é a principal razão para não viajarem. Estão tentando fazer um currículo de peso o mais cedo possível, já que o lema hoje em dia nessas carreiras é publish or perish. Ou seja, quem não mostra serviço some de vez.”

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No interior do Rajastão encontrei ingleses, franceses, italianos e alemães. Tirando um grupo de ingleses e outro de alemães, cada um com umas vinte pessoas, os “colegas” apareciam aos pares ou, mais freqüentemente, pares de pares. Primeiro pensei que isso fosse por causa do tipo de hotel pequeno e familiar em que me hospedei, mas depois observei o mesmo padrão pelos monumentos e demais atrações turísticas. Pouquíssima gente viajando solo, em geral mulheres: uma alemã em Khumbalgarh, uma inglesa em Narlai, outra em Rohet e uma belga em Fatehpur Sikri.

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Muita gente mantém diários de viagem. À noitinha, nas áreas comuns dos hotéis, há sempre alguém escrevinhando furiosamente num caderno. O povo mais caprichoso junta bilhetes de trem, recibos de entrada em museus, cartões de restaurantes. Muita papelada, cola e tesoura. Meu computador foi uma estrela solitária até Jaipur, onde um americano pilotava um Dell no lobby, a área wi-fi da casa.

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A dupla mais interessante que conheci foi um casal bengali em Rohet que, no fundo, não era casal: havia ali uma fuga amorosa. Os dois entre os 40 e 50 anos, elegantes, finos, intelectuais. Foi amizade à primeira vista.

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No trem de Johdpur para Jaipur sentou-se a meu lado uma senhora mais ou menos da minha idade, magra, bonita, embrulhada em xales, com um vago ar ripongo quebrado pela Nikon D5000 e três boas lentes. Durante o percurso, fiquei sabendo que é alemã, vive de artesanto e mora há décadas na Flórida, onde teve a sorte de ter a casa destruída por um furacão. Com isso, embolsou o dinheiro do seguro, reconstruiu a casa com as próprias mãos e, desde 1994, usa o que sobrou para viajar. Já esteve várias vezes na Índia, onde segue um guru que faz workshops de meditação. “Você já parou para pensar no milagre da respiração? É por trás da respiração que está o divino em nós, e é através da respiração que podemos chegar até Deus. Só se alcança a paz através da respiração.” Uh, right. Quem sou eu para contradizer isso? Felizmente a pregação durou pouco. Logo estávamos conversando sobre coisas mais mundanas. Ela ficou chocada quando soube que fiquei em hotéis que cobram diárias de 50 dólares ou mais (e que, confesso, me pareceram baratos pela qualidade e pelos serviços oferecidos). “Um quarto de hotel na Índia custa 10 ou 15 dólares! Se você não fizer questão de banheiro, pode sair até por cinco. E hotel é hotel, tudo o que a gente quer é uma cama.” I beg to disagree -- mas fica registrada a informação para leitores com verdadeiro espírito de aventura.

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Na linda Alsisar Haveli, em Jaipur, jantei com uma moça francesa que passa a metade do ano na Índia, mas que, se pudesse, passava o ano inteiro. É designer de jóias e acessórios, e supervisiona a fabricação na Índia para venda na França. Sua griffe, Inoui, é vendida em 60 lojas diferentes espalhadas pelo país. No momento, procura casa em Jaipur, porque está cansada de hotéis. Calcula que, entre aluguel, despesas básicas e despesas com empregados, motorista inclusive, pode-se viver muito bem na cidade com menos de 3 mil euros. Nossa conversa começou porque ela estava com uma das echarpes mais lindas que já vi, e perguntei onde a havia comprado. Era criação sua.

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A melhor forma de sair pela Índia é alugar um carro com motorista. O meu se chama Dev Raj, e vem de uma aldeia do Himalaia, onde tem família, mulher e filhos. Só volta para casa de vez em quando, porque o trabalho o mantém na estrada a maior parte do tempo. Tem uns 40 anos e uma boa vontade desconcertante. No começo da viagem, eu não entendia uma palavra do que ele dizia; agora, nos entendemos bastante bem. Dev Raj é excelente motorista mas, mais importante, excelente pessoa. A viagem não seria a mesma se eu não tivesse um companheiro de estrada tão gente boa.

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