segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Anotações sobre a Índia

Falam-se barbaridades sobre o trânsito da Índia e, em termos ocidentais, é tudo verdade. Acontece que o trânsito é uma invenção humana, um conjunto de códigos desenvolvido a partir de certas necessidades. Depois de uns dias observando o que acontece aqui, cheguei à conclusão de que não há nada de muito errado com o trânsito local; apenas, ele segue um conjunto de códigos diferente, tão incompreensível para a nossa mentalidade quanto, digamos, a relação com a religião ou o uso ensandencido de pimentas e especiarias e a onipresença do coentro.

Ninguém usa espelho retrovisor, acessório inexistente nas motos e nos carros mais velhos. Na maioria dos carros novos o pessoal deixa os espelhos dobrados, até porque, com a quantidade de fino que se tira, aquilo só atrapalha. É por isso que todos os veículos trazem escrito “Horn Please” na traseira; afinal, se você não avisar que está vindo, como é que eles vão saber?

Em prol da comunidade internacional, a Índia fez algumas concessões às noções ocidentais de deslocamento automotor, mas está claro que, como todas as concessões feitas ao arrepio da alma nacional, essas também não pegaram. A idéia de mão e contramão é um estrangeirismo extremamente mal assimilado. As faixas para pedestres chegam a ser ridículas, já que parte ponderável dos pedestres têm quatro patas e não está nem aí para essas bobagens. O mesmo vale para os semáforos.

Capacetes para motociclistas são obrigatórios, com algumas exceções estabelecidas em lei. Caronas não usam, mesmo porque enfileirar quatro capacetes seguidos na mesma moto é difícil. Sikhs não usam porque é impossível pôr o capacete por cima do turbante. Mulheres também não, porque depois de gastar horas arrumando o cabelo, não faria sentido estragar tudo com acessório tão deselegante.

O trânsito indiano é, a despeito das aparências, um balé de alta sofisticação, que leva em conta não só veículos e pedestres, mas vacas, camelos, carros de boi, charretes, tratores, burricos, bicletas, motos, cachorros, cabras, carneiros, búfalos, macacos, porcos, galinhas e o que mais resolva utilizar a via.

Estou encantada com as nuances que este país inventou para uma atividade tão sem graça, e espero chegar ao fim da viagem tendo dominado, pelo menos, a arte de atravessar a rua sozinha. Por enquanto, tudo o que eu faço é parar estatelada no meio da confusão, mugindo bem alto. Se eles acreditarem que sou uma vaca, estou salva.

* * *

Quando o sol se pôs no dia seis de novembro eu estava sentada numa pedra em frente a um lago na província de Deogarh, no Rajastão, ao lado de Devarth Singh, de 21 anos, sobrinho dos meus anfitriões no Deogarh Mahal, palácio do século XVII hoje convertido em hotel. Conversávamos sobre filmes indianos, câmeras fotográficas e os seus projetos de vida, enquanto o garçom que veio conosco no jipe nos servia chai e biscoitinhos. Não se via vivalma num raio de quilômetros.

Assim como o negócio do turismo na região, o lago estava quase seco. A falta de chuvas decentes há mais de dois anos está fazendo um estrago horrível, só comparável às ameaças de atentados terroristas e à crise financeira, que afugentaram os firangs. Pássaros se arrumavam para dormir, e, no céu, apareciam as primeiras estrelas. Nesse canto deserto do mundo ainda se vêem estrelas.

O ar fresco cheirava a terra, feno e estrume, e de repente me ocorreu que esse sempre foi o aroma natural do planeta, antes que o cobríssemos de cimento e de asfalto.

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A única coisa que me assustava em relação à Índia, antes de vir para cá, eram os cheiros. Não sou enjoada em relação a nada e tenho poucos medos, mas tenho um nariz cheio de nove-horas. Visitar a Jama Masjid em Nova Delhi, por exemplo, foi um programa desagradabilíssimo, menos pela roupa ridícula que me fizeram vestir do que pela fedentina generalizada, misto de lixão com vala negra e gente porca.

Fiquei preocupada achando que aquilo era só uma amostra do que me esperava em Varanasi mas, graças aos 33 milhões de deuses do panteão hinduísta, estava enganada. O cheiro predominante em Varanasi é o de incenso, queimado por toda a parte em oferendas e rituais. Não é ruim, e combina com o ambiente. Aqui e ali alguns cheiros se sobrepõem, sobretudo o das frituras, o de especiarias e o de algum viajante com o desodorante vencido.

O próprio Ganges, poluído como está, não cheira, assim como não cheiram os ghats onde mortos são cremados dia e noite. A população local atribui o fato a um milagre de Shiva, mas a lógica dá o crédito a um santo mais banal chamado vento. Como não vi nenhum dos famosos cadáveres deslizando correnteza abaixo, não posso falar da cidade no seu pior.

Udaipur tem um estranhíssimo cheiro de água no deserto. Não me perguntem o que é isso, porque não há nada mais difícil de descrever do que um cheiro. A julgar pela quantidade de mangueiras, acho que, no verão, o ar deve ser com o de Belém do Pará, com a diferença que a água, lá, é molhada mesmo.

O sertão do Rajastão, que tenho percorrido nos últimos dias, cheira a campo. O esterco é onipresente, inclusive como combustível e material de construção. Não gosto nem desgosto, acho absolutamente normal, e nem esperaria outra coisa de uma área rural. O jardim do hotel de onde escrevo é perfumado por rosas e dezenas de pés de jasmim. Ouvem-se a água de uma fonte e as vozes dos pássaros; o efeito é paradisíaco.

Dizem que as favelas em Calcutá e Bombaim fedem pavorosamente, mas não está no meu programa visitar favela alguma. Deixo isso para antropólogos, assistentes sociais e pessoas sem noção. Tenho a maior bronca desse turismo da miséria, que acha pitoresco freqüentar a desgraça.

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