quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Turbantes, facas e janelas: volta ao lar



Terça-feira, cinco e meia da tarde: estou voltando para casa. Pela janela vejo a ponta da asa e as nuvens que passam de marcha a ré. Na classe executiva da British Airways, dois proveitos não cabem num saco só, e para ir na janela é preciso viajar de costas. É uma lógica às avessas, pois quem vai no corredor nem percebe se está indo ou vindo. Não sei a velocidade a que estamos voando, não sei a nossa altitude e nem imagino qual seja a temperatura do lado de fora da aeronave, detalhes que o comandante misericordiosamente nos poupou. Até hoje não entendi porque as tripulações informam esses fatos alarmantes aos passageiros. O que é que eles podem fazer a respeito do assunto?!

Pois. O fato é que os meus dias de Índia chegaram ao fim. Aprendi coisas de que nem suspeitava e descobri um mundo interminável, um planeta à parte, que não deixou de me surpreender até o último momento.

* * *

Andando pelo aeroporto Indira Gandhi à procura de uma caixa de correio para despachar os últimos postais, dei com uma fila de sikhs, barbudos, compenetrados, de turbante na cabeça e faca na mão. Entre eles havia homens prósperos usando ternos bem cortados, estudantes, gente do povo. Lá na frente, um inspetor igualmente sikh, com o turbante grená caprichosamente amarrado, punha cada faca num envelope, onde anotava o nome do passageiro e o número do vôo. A seu lado, um segundo inspetor, também sikh, lacrava os envelopes.

Notem que “lacrar”, no caso, não era colar, fechar com fita crepe ou selo de segurança. Era lacrar mesmo, como se fazia há cem anos: selar o envelope com lacre derretido na chama de um isqueiro, e marcá-lo com um sinete.

Quando aparecia uma faca bonita os inspetores olhavam com interesse redobrado e trocavam idéias com o proprietário. Desnecessário dizer que todo o processo é extremamente lento, mas nenhum dos homens da fila me pareceu impaciente ou estressado. Um deles me explicou que os envelopes são entregues aos comandantes dos aviões, e devolvidos no aeroporto de chegada pela polícia.

Imagino que, talvez à exceção do lacre, este seja um procedimento habitual em relação a armas em geral, mas não deixa de ser extraordinário que um aeroporto movimentado como o de Nova Delhi mantenha funcionários única e exclusivamente para cuidar do embarque das facas dos sikhs, objetos de relevância religiosa, mas destituídos de finalidade prática.

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Pouco antes de dar com o registro das facas, passei pela segurança, e um dos policiais me pediu que abrisse a mala de mão depois de observar o conteúdo pelo raio-x.

-- Quero ver as lentes.

Pedido razoável. Não deve ser impossível ocultar explosivos em equipamento fotográfico.

-- Ah, essa 18mm-200mm é o meu sonho! Que tal é ela? – perguntou o rapaz, revirando a lente. Fiquei comovida com a curiosidade do gesto, e mostrei a ele meus outros tesouros.

-- Olha essa aqui. É a minha favorita, macro 105mm, um tiquinho pesada, mas f2.8.

-- Posso experimentar?

E lá ficamos os dois entretidos com os brinquedos, como se estivéssemos num fotoclube qualquer.

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Os sikhs são extremamente prestativos. Nos seus templos fazem questão de oferecer água e comida a qualquer visitante, sem distinção de cor, credo ou casta, e são apenas um dos muitos paradoxos da Índia. Agora mesmo esses camaradas, cujo propósito existencial é, em teoria, servir à comunidade, estão se matando uns aos outros e tocando fogo em automóveis no estado de Haryana porque um guru que a maioria não reconhece teve a suprema ousadia de usar um turbante com as cores do Guru Nanak, que fundou a religião no século XVI.

Os sikhs vão para os arranca-rabos com outros sikhs e para os confrontos com a polícia armados de bastões e de espadas. Protagonizam cenas medievais e fazem a delícia dos fotógrafos.

Manmohan Singh, o atual primeiro ministro, é sikh. Sou fã dele. É homem distintíssimo, de grande sofisticação intelectual e inquestionável visão política; basta dizer que foi o condutor da abertura econômica que, em princípios dos anos 90, botou a Índia no mapa. No entanto, como todo sikh, usa turbante 24 horas por dia, algo incompreensível para quem vive num mundo laico como o nosso. Antes de embarcar, vi um noticiário em que aparecia numa conferência internacional, com gigantescos headphones postos por cima do turbante acinzentado. Com todo o respeito, parecia o Mickey.

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Quarta-feira, oito da manhã: estou em casa! Depois de mais de um mês de clima seco, desértico, a umidade me espanta. Não é nenhuma novidade, mas é como se fosse. Na Índia, meus pés tinham a permanente sensação de pisar em poeira, por limpo que estivesse o chão; aqui, na minha casa tão caprichada e amorosamente cuidada pela Vanessa, onde cada coisa está no seu lugar e não há uma poeirinha no chão, a sensação é a de pisar numa superfície quase molhada. Nasci no Rio e vivi aqui a vida inteira, mas foi preciso experimentar o exato oposto do que sentimos na pele para perceber o que sentimos na pele.

Pela janela vejo a Lagoa, linda como sempre. Sob o olhar atento dos gatos, ataco a pilha de correspondência e de contas que me espera, enquanto, lá fora, operários desmontam o palanque da festa de inauguração da Árvore de Natal.

A vida volta ao normal.


(O Globo, Segundo Caderno, 10.12.2009)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Enterre meu coração no Sarojini Market

O Sarojini Market fica perto de casa, e serve à vizinhança. É uma espécie de Old Delhi para principiantes, com uma quantidade de coisas à venda, de alfaces a celulares, mas sem carros, motos ou tuc-tucs circulando entre as pessoas. Não consigo voltar de lá de mãos abanando nem quando vou fotografar, como foi o caso ontem: há sempre uma tentação irresistível no caminho. Aliás, se há uma coisa que não falta na Índia é tentação irresistível.

Este é o país mais perigoso em que já estive, porque tudo é pelo menos interessante e quase sempre barato e, em tese, tudo está ao nosso alcance, ainda mais quando se convertem rúpias em reais e/ou se comparam os preços com os praticados no Rio. O problema é que de real em real se desconstrói, rapidamente, uma boa conta bancária.

Já me proibi de comprar elefantinhos, por exemplo, mas a cada momento me aparece um diferente. Resultado: uma coleção de todos os feitios, que nem sei bem como vou levar na mala. Com rodas e sem rodas; de madeira lisa, madeira esculpida e madeira pintada; de barro; de mármore, com entalhe e sem; de jade... Até de bronze tenho um, ainda que minúsculo.

Pulseiras? Ora, por quem sois. Já tenho de miçangas, de osso de camelo, de prata, bronze, madeira, laca, vidro e madrepérola. E colares de olho de tigre e coral e lápis lazuli, e brincos de todas as cores e feitios, e caixinhas coloridas de madeira e de papel machê; mais caderninhos de papel artesanal com brilhos e pedacinhos de folhas, e miniaturas, e colchas do Rajastão e um xale de seda de Varanasi.

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Dizem que as pessoas costumam passar por grandes transformações espirituais quando vêm à Índia, e é verdade. Recebi um caboclo comprador e fico doida quando saio na rua, de tantas, tão lindas e tão acessíveis que são as mercadorias.

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Lá vinha eu com uns pacotinhos no Sarojini Market quando um vendedor me agarrou no meio da rua:

-- Shopping bag? Shopping bag? Shopping bag?

Ele tinha umas sacolas de pano enormes, coloridas, com ziper e alças acolchoadas. Pedia 200 rúpias, o equivalente a R$ 7,40 pela última cotação. Agora, que já fui devidamente treinada pela minha amiga Margarida Barahona, não sou mais a otária completa de antes; sou apenas meio otária. Dei-lhe, pois, um passa-fora, e disse que estava maluco. Pediu 100. Topei.

A sacola é um primor de mal acabada, mas é grande, prática e nela couberam todos os pacotinhos. Poucos metros adiante, outro vendedor, com sacolas iguais, me perguntou quanto havia dado nela. Diante da resposta, ofereceu as suas por 50, ou seja, menos de dois reais. Se eu insistisse um pouco, levava por 30.

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Nova Delhi é seca, fica perto do deserto, e uma camada permanente e insidiosa de poeira cobre tudo, o tempo todo, somando-se à poluição tradicional que conhecemos tão bem. Depois de algumas horas na rua, por frio que esteja, a garganta se ressente, e bate uma sede danada. Talvez por isso se encontrem tantos vendedores de limonada espalhados pela cidade.

Parei num deles, paguei dez rúpias e fiquei observando enquanto ele acrescentava ao líquido de uma garrafinha fartas colheradas de açúcar. Lá muito limpa a coisa não era, mas tinha uma cara boa, e bebi um gole com grande gosto. Foi um choque só: as colheradas não eram de açúcar, mas de... sal!

Bleargh!!!

Tentei beber mais um pouco à guisa de estudo antropológico-gastronômico, mas aquela porcaria era de fato nojenta e intragável. E lá fiquei zanzando pelo mercado feito uma barata tonta, com aquele gosto horrível na boca e o copo de plástico na mão, à procura de uma lata de lixo. Como em quase todo o resto da cidade (e quiçá do país) não há latas de lixo no Sarojini Market. Parei na loja de celulares onde ia deixar o velho N95 para trocar de casca. Dei o copo para o vendedor:

-- Você podia jogar isso fora, por favor?

O moço olhou para mim com cara de ponto de interrogação e atirou tudo, copo e limonada, na rua em frente. Não acertou ninguém por pura sorte.

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Este país é doido, sujo, barulhento e confuso, mas é muito, muito divertido. Até porque basta andar um quarteirão ou atravessar a rua, e logo se estará num lugar completamente diferente daquele em que se estava. A zorra de Old Delhi e o paraíso de Lodhi Gardens, o mais lindo dos jardins urbanos, não são opostos, mas complementares.

O Sarojini Market, que vende lado a lado jóias, celulares caríssimos e sacolas artesanais a preço vil, tudo coberto pela mesma poeira ancestral, é uma espécie de resumo da ópera.

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Tenho pensado muito na metáfora do sapo na fervura em relação à violência brasileira, em geral, e carioca, em particular. É assustador notar, daqui de longe, a temperatura da água com que já nos acostumamos. A imagem do ônibus em chamas, anteontem, que para nós só não foi inteiramente rotineira por ter Copacabana de fundo, adquire uma dimensão apocalíptica vista da Índia, país violento no atacado, mas pacífico no varejo. Uma das melhores lembranças que vou levar comigo é a tranqüilidade de sair de casa e andar com as minhas câmeras e as minhas lentes por toda a parte, mesmo nas maiores multidões, sem qualquer medo de ser assaltada.

Goa: vacas profanas e padres brâmanes

O jantar da Associação de Professores de Português foi um evento simpático. Reuniu cerca de quarenta pessoas, entre professores, maridos e esposas, que se divertiram conversando em grupinhos, bebendo vinho português e comendo risoles. A associação aproveitou a ocasião para eleger o melhor professor (no caso, professora) e, no fim da noite, todos receberam CDs de bossa-nova. No cardápio, além da discussão dos eternos problemas da classe, lombo de porco à moda e bacalhoada, com sorvete de coco de sobremesa. Tudo muito familiar e corriqueiro, exceto pelo fato de estarmos a cinco horas e meia de Portugal, ou sete horas e meia do Brasil.

Goa fica na costa Leste da Índia, mas como geografia nem sempre é destino, vive, culturalmente, num vago ponto latino. Há nomes portugueses espalhados por todo o estado e, em alguns bairros da capital, Pangim, o português continua sendo a língua de casa, embora os idiomas predominantes sejam o konkani e o inglês.

O grande artista local, hoje verdadeira instituição indiana, é o desenhista Mario Miranda, goes de quatro costados e fala portuguesa; o estilista que pôs Goa no mapa da moda é Wendell Rodricks (Rodrigues), que veste os astros de Bollywood em linhos e algodões elegantes e despojados, com um viés mediterrâneo, na contramão dos brilhos e paetês orientais.

Ao contrário das tradicionais casas indianas, que terminam em terraços, as de Goa têm telhados de quatro águas, diretamente importados de Portugal; mas contribuíram para a arquitetura lusotropical (na definição de Gilberto Freyre) com os alpendres, criados para proteger o interior do aguaceiro das monções. Em frente à entrada, em vez dos habituais altares para divindades hindus, têm pequenos santuários encimados pela cruz, onde o santo de devoção é enfeitado pelas mesmas guirlandas alaranjadas que, no resto do país, enfeitam os Ganeshas, Shivas e Laksmis.

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Há cruzes e igrejas por toda a parte, até no meio da selva. Quando a antiga capital mudou-se para o litoral em 1843, as casas foram desmontadas para que se aproveitassem as pedras, raras na região. As antigas igrejas, porém, permaneceram intocadas. Hoje são lindas de se ver, cercadas de árvores por todos os lados, e parecem o cenário perfeito para um filme de Indiana Jones.

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Como em Portugal, os nomes de várias ruas vêm escritos em placas de azulejos; o chão é imaculadamente limpo, ao contrário do que se vê pelo resto da Índia, onde jogar lixo porta afora é tradição desde os tempos em que o lixo era orgânico e, por conseguinte, ótima comida para animais. Por falar nisso, não se vêem muitas vacas fora do pasto, e as pobres pouco têm de sagradas: um bom bife é apreciado em Goa, assim como a carne de porco, coisa que praticamente não se come em outra parte do subcontinente.

As mulheres usam cabelo curto, andam de salto e vestem-se com roupas ocidentais, ainda que bem-comportadas. Se não fosse pela cor da pele e pela fisionomia, podiam muito bem estar no interior de Portugal ou numa cidadezinha qualquer em Minas ou no Nordeste. A linguagem corporal local é cem por cento ocidental. Homens e mulheres se dão as mãos e se beijam quando se encontram ou se despedem; e ninguém se acocora ou se senta no chão, como é normal entre os demais indianos. No final da tarde, todos trazem cadeiras para a porta de casa, para aproveitar a fresca e pôr a conversa em dia.

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Apesar do sotaque português, Goa tem muito mais de Brasil do que de Portugal. A vegetação é parecidíssima com a nossa, e a colonização portuguesa tratou de torná-las ainda mais semelhantes, levando para o Brasil manga e coco e trazendo para a Índia goiaba, mamão, caju, abacaxi e tomate, para não falar na onipresente pimenta malagueta.

O caju merece uma observação à parte. As castanhas são preparadas de diversas maneiras, algumas horrivelmente apimentadas; as passas e o caju em calda ainda não foram descobertos, assim como o suco e a cajuína. A explicação mais provável que encontro para essas graves lacunas gastronômicas é o aproveitamento das frutas para a produção de uma cachaça forte e cheirosa chamada feni que, segundo amigos que entendem do assunto, é o que há de bom.

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O calor e as praias atraem gente de perna de fora do mundo inteiro. Calingute, que fica a meia hora de Pangim, podia ser Búzios, Trancoso ou Porto de Galinhas: concentra uma quantidade de pizzarias, restaurantes e botecos, abertos dia e noite. Entre uns e outros, dezenas de lojinhas de roupa de praia e cacarecos indianos, com a diferença que os donos não são argentinos, e os cacarecos indianos vêm ali da esquina. Na moda para estrangeiros, prevalece o hippie fino universal.

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Goa foi colônia portuguesa até 1961. Com a independência, o português deixou de ser língua obrigatória. É falado hoje apenas pelos goeses quatrocentões e, se o estado continuar sendo ignorado pelos portugueses -- e, sobretudo, pelos brasileiros -- logo dará lugar ao inglês, que é o que os indianos usam para se comunicar mesmo entre si, quando vêm de estados diferentes.

Ainda assim, acho que mais importante do que a língua é a cultura como herança comum. Não é tanto o português que faz dos goeses os indianos exóticos que são, mas um jeito de ser que se reconhece na Bahia, no Rio ou em Luanda, em Cabo Verde ou em Moçambique. Vai ser uma pena se, um dia, Goa deixar de ser a mistura que é: afinal, onde mais se pode encontrar um padre brâmane?

Uns e outros

Em Katmandu, quase não consegui dormir porque o casal do quarto ao lado discutia a relação aos berros. Em inglês, mas com sotaques diferentes: ele estava tendo um ataque de ciúmes e tinha uma voz tão autoritária e desagradável que tive de me segurar para não ir bater na porta e tomar satisfações. Como toda discussão de casal, esta também parecia um disco quebrado, e voltava sempre aos mesmos pontos. Tem graça atravessar o mundo e passar a noite acordada por conta de algo tão vulgar e sem sentido?

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Vi, por toda a parte, turistas da minha idade ou mais velhos, ou então bem novinhos, na casa dos 20. Faltava uma camada demográfica intermediária, e eu não entendia por quê, até os leitores do blog matarem a charada. “Estamos numa idade em que os filhos são pequenos e dificilmente conseguimos viajar fora do período de férias escolares”, escreveu a Luciana Betenson. “Além disso, muitos pais trabalham e ficam tão pouco tempo com as crianças que se sentem culpados de tirar férias e viajar sozinhos.” E a Márcia Amaral, que tem uma respeitável carreira acadêmica como física, complementou: “Pelo que observo por um monte de colegas minhas que seguiram carreira de pesquisa e optaram por não ter filhos, o trabalho é a principal razão para não viajarem. Estão tentando fazer um currículo de peso o mais cedo possível, já que o lema hoje em dia nessas carreiras é publish or perish. Ou seja, quem não mostra serviço some de vez.”

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No interior do Rajastão encontrei ingleses, franceses, italianos e alemães. Tirando um grupo de ingleses e outro de alemães, cada um com umas vinte pessoas, os “colegas” apareciam aos pares ou, mais freqüentemente, pares de pares. Primeiro pensei que isso fosse por causa do tipo de hotel pequeno e familiar em que me hospedei, mas depois observei o mesmo padrão pelos monumentos e demais atrações turísticas. Pouquíssima gente viajando solo, em geral mulheres: uma alemã em Khumbalgarh, uma inglesa em Narlai, outra em Rohet e uma belga em Fatehpur Sikri.

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Muita gente mantém diários de viagem. À noitinha, nas áreas comuns dos hotéis, há sempre alguém escrevinhando furiosamente num caderno. O povo mais caprichoso junta bilhetes de trem, recibos de entrada em museus, cartões de restaurantes. Muita papelada, cola e tesoura. Meu computador foi uma estrela solitária até Jaipur, onde um americano pilotava um Dell no lobby, a área wi-fi da casa.

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A dupla mais interessante que conheci foi um casal bengali em Rohet que, no fundo, não era casal: havia ali uma fuga amorosa. Os dois entre os 40 e 50 anos, elegantes, finos, intelectuais. Foi amizade à primeira vista.

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No trem de Johdpur para Jaipur sentou-se a meu lado uma senhora mais ou menos da minha idade, magra, bonita, embrulhada em xales, com um vago ar ripongo quebrado pela Nikon D5000 e três boas lentes. Durante o percurso, fiquei sabendo que é alemã, vive de artesanto e mora há décadas na Flórida, onde teve a sorte de ter a casa destruída por um furacão. Com isso, embolsou o dinheiro do seguro, reconstruiu a casa com as próprias mãos e, desde 1994, usa o que sobrou para viajar. Já esteve várias vezes na Índia, onde segue um guru que faz workshops de meditação. “Você já parou para pensar no milagre da respiração? É por trás da respiração que está o divino em nós, e é através da respiração que podemos chegar até Deus. Só se alcança a paz através da respiração.” Uh, right. Quem sou eu para contradizer isso? Felizmente a pregação durou pouco. Logo estávamos conversando sobre coisas mais mundanas. Ela ficou chocada quando soube que fiquei em hotéis que cobram diárias de 50 dólares ou mais (e que, confesso, me pareceram baratos pela qualidade e pelos serviços oferecidos). “Um quarto de hotel na Índia custa 10 ou 15 dólares! Se você não fizer questão de banheiro, pode sair até por cinco. E hotel é hotel, tudo o que a gente quer é uma cama.” I beg to disagree -- mas fica registrada a informação para leitores com verdadeiro espírito de aventura.

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Na linda Alsisar Haveli, em Jaipur, jantei com uma moça francesa que passa a metade do ano na Índia, mas que, se pudesse, passava o ano inteiro. É designer de jóias e acessórios, e supervisiona a fabricação na Índia para venda na França. Sua griffe, Inoui, é vendida em 60 lojas diferentes espalhadas pelo país. No momento, procura casa em Jaipur, porque está cansada de hotéis. Calcula que, entre aluguel, despesas básicas e despesas com empregados, motorista inclusive, pode-se viver muito bem na cidade com menos de 3 mil euros. Nossa conversa começou porque ela estava com uma das echarpes mais lindas que já vi, e perguntei onde a havia comprado. Era criação sua.

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A melhor forma de sair pela Índia é alugar um carro com motorista. O meu se chama Dev Raj, e vem de uma aldeia do Himalaia, onde tem família, mulher e filhos. Só volta para casa de vez em quando, porque o trabalho o mantém na estrada a maior parte do tempo. Tem uns 40 anos e uma boa vontade desconcertante. No começo da viagem, eu não entendia uma palavra do que ele dizia; agora, nos entendemos bastante bem. Dev Raj é excelente motorista mas, mais importante, excelente pessoa. A viagem não seria a mesma se eu não tivesse um companheiro de estrada tão gente boa.

Anotações sobre a Índia

Falam-se barbaridades sobre o trânsito da Índia e, em termos ocidentais, é tudo verdade. Acontece que o trânsito é uma invenção humana, um conjunto de códigos desenvolvido a partir de certas necessidades. Depois de uns dias observando o que acontece aqui, cheguei à conclusão de que não há nada de muito errado com o trânsito local; apenas, ele segue um conjunto de códigos diferente, tão incompreensível para a nossa mentalidade quanto, digamos, a relação com a religião ou o uso ensandencido de pimentas e especiarias e a onipresença do coentro.

Ninguém usa espelho retrovisor, acessório inexistente nas motos e nos carros mais velhos. Na maioria dos carros novos o pessoal deixa os espelhos dobrados, até porque, com a quantidade de fino que se tira, aquilo só atrapalha. É por isso que todos os veículos trazem escrito “Horn Please” na traseira; afinal, se você não avisar que está vindo, como é que eles vão saber?

Em prol da comunidade internacional, a Índia fez algumas concessões às noções ocidentais de deslocamento automotor, mas está claro que, como todas as concessões feitas ao arrepio da alma nacional, essas também não pegaram. A idéia de mão e contramão é um estrangeirismo extremamente mal assimilado. As faixas para pedestres chegam a ser ridículas, já que parte ponderável dos pedestres têm quatro patas e não está nem aí para essas bobagens. O mesmo vale para os semáforos.

Capacetes para motociclistas são obrigatórios, com algumas exceções estabelecidas em lei. Caronas não usam, mesmo porque enfileirar quatro capacetes seguidos na mesma moto é difícil. Sikhs não usam porque é impossível pôr o capacete por cima do turbante. Mulheres também não, porque depois de gastar horas arrumando o cabelo, não faria sentido estragar tudo com acessório tão deselegante.

O trânsito indiano é, a despeito das aparências, um balé de alta sofisticação, que leva em conta não só veículos e pedestres, mas vacas, camelos, carros de boi, charretes, tratores, burricos, bicletas, motos, cachorros, cabras, carneiros, búfalos, macacos, porcos, galinhas e o que mais resolva utilizar a via.

Estou encantada com as nuances que este país inventou para uma atividade tão sem graça, e espero chegar ao fim da viagem tendo dominado, pelo menos, a arte de atravessar a rua sozinha. Por enquanto, tudo o que eu faço é parar estatelada no meio da confusão, mugindo bem alto. Se eles acreditarem que sou uma vaca, estou salva.

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Quando o sol se pôs no dia seis de novembro eu estava sentada numa pedra em frente a um lago na província de Deogarh, no Rajastão, ao lado de Devarth Singh, de 21 anos, sobrinho dos meus anfitriões no Deogarh Mahal, palácio do século XVII hoje convertido em hotel. Conversávamos sobre filmes indianos, câmeras fotográficas e os seus projetos de vida, enquanto o garçom que veio conosco no jipe nos servia chai e biscoitinhos. Não se via vivalma num raio de quilômetros.

Assim como o negócio do turismo na região, o lago estava quase seco. A falta de chuvas decentes há mais de dois anos está fazendo um estrago horrível, só comparável às ameaças de atentados terroristas e à crise financeira, que afugentaram os firangs. Pássaros se arrumavam para dormir, e, no céu, apareciam as primeiras estrelas. Nesse canto deserto do mundo ainda se vêem estrelas.

O ar fresco cheirava a terra, feno e estrume, e de repente me ocorreu que esse sempre foi o aroma natural do planeta, antes que o cobríssemos de cimento e de asfalto.

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A única coisa que me assustava em relação à Índia, antes de vir para cá, eram os cheiros. Não sou enjoada em relação a nada e tenho poucos medos, mas tenho um nariz cheio de nove-horas. Visitar a Jama Masjid em Nova Delhi, por exemplo, foi um programa desagradabilíssimo, menos pela roupa ridícula que me fizeram vestir do que pela fedentina generalizada, misto de lixão com vala negra e gente porca.

Fiquei preocupada achando que aquilo era só uma amostra do que me esperava em Varanasi mas, graças aos 33 milhões de deuses do panteão hinduísta, estava enganada. O cheiro predominante em Varanasi é o de incenso, queimado por toda a parte em oferendas e rituais. Não é ruim, e combina com o ambiente. Aqui e ali alguns cheiros se sobrepõem, sobretudo o das frituras, o de especiarias e o de algum viajante com o desodorante vencido.

O próprio Ganges, poluído como está, não cheira, assim como não cheiram os ghats onde mortos são cremados dia e noite. A população local atribui o fato a um milagre de Shiva, mas a lógica dá o crédito a um santo mais banal chamado vento. Como não vi nenhum dos famosos cadáveres deslizando correnteza abaixo, não posso falar da cidade no seu pior.

Udaipur tem um estranhíssimo cheiro de água no deserto. Não me perguntem o que é isso, porque não há nada mais difícil de descrever do que um cheiro. A julgar pela quantidade de mangueiras, acho que, no verão, o ar deve ser com o de Belém do Pará, com a diferença que a água, lá, é molhada mesmo.

O sertão do Rajastão, que tenho percorrido nos últimos dias, cheira a campo. O esterco é onipresente, inclusive como combustível e material de construção. Não gosto nem desgosto, acho absolutamente normal, e nem esperaria outra coisa de uma área rural. O jardim do hotel de onde escrevo é perfumado por rosas e dezenas de pés de jasmim. Ouvem-se a água de uma fonte e as vozes dos pássaros; o efeito é paradisíaco.

Dizem que as favelas em Calcutá e Bombaim fedem pavorosamente, mas não está no meu programa visitar favela alguma. Deixo isso para antropólogos, assistentes sociais e pessoas sem noção. Tenho a maior bronca desse turismo da miséria, que acha pitoresco freqüentar a desgraça.

Diário de viagem: Katmandu

Para a minha geração, Katmandu nunca foi exatamente uma localização geográfica, mas um estado de espírito. Capital do Nepal escondida na cordilheira do Himalaia, ela era o destino dos sonhos de dez entre dez hippies, dos fãs de Cat Stevens e até de uma parcela dos leitores de Lobsang Rampa, picareta que fez muito sucesso nos anos 70 descrevendo a vida no Tibete. Que não é o Nepal, mas é logo ali.

Os relatos que chegavam daquele canto remoto davam conta de uma cidadezinha encantadora, cercada de campos de arroz e salpicada de templos antiqüíssimos, onde monges de cabeça raspada passavam o dia contemplando o crescimento das plantas.

Sonhei muito com aquilo lá. Depois cresci, tive que cuidar da vida e Katmandu virou apenas uma música no player. Mas ninguém é bixo-grilo impunemente. Assim é que, semana passada, desembarquei no Nepal, ansiosa por respirar o ar puro das montanhas.

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Há poucas coisas tão diferentes quanto a Katmandu idealizada e a da vida real. A cidadezinha bucólica morreu há tempos, assassinada pela explosão demográfica, por décadas de conflito armado, pela poluição e pela ocupação descontrolada.

A primeira impressão que se tem é péssima; as subseqüentes também. O país é muito pobre, mas nem por isso as construções precisavam ser tão feias. As lindas stupas que enfeitam as capas dos guias de turismo sumiram em meio às casas e prédios horripilantes, para não falar no ataque agressivo dos outdoors que cobrem todas as superfícies disponíveis. A julgar pela quantidade de anúncios, a Pepsi comprou Katmandu. Só de birra, bebi Coca-Cola.

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As ruas e estradas esburacadas são disputadas por carros, cabras, caminhões, bicicletas, pequenos ônibus, charretes, vacas sagradas e muitas, mas muitas motos, para não falar nos vendedores ambulantes, que se instalam tranqüilamente onde bem entendem.

O conceito de mão e contramão é desconhecido e os semáforos ainda não chegaram ao país, de modo que nada vai a lugar nenhum, nem mesmo as vacas, que aceitam com santa resignação a impossibilidade de exercer o seu direito de ir e vir. Boa parte da população circula de máscara, sábia providência considerando-se que, por causa da poluição, os olhos ardem, a garganta seca, o nariz fica esturricado.

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Apesar do caos e da feiúra generalizados, a viagem tem suas compensações. A praça principal continua como era há centenas de anos, o artesanato é delicado e em geral muito bonito, o povo é acolhedor. Além disso, basta sair um pouco da cidade para encontrar o Nepal que se imaginava: lá estão os campos de arroz, os camponeses às voltas com a colheita e, na linha do horizonte, os picos do Himalaia em toda a sua glória.

Para quem quer ver as montanhas de perto mas não tem tempo, preparo físico ou joelho para ir a pé, a Yeti Air faz vôos panorâmicos de uma hora por U$ 170. O horário ideal é ao nascer do sol, quando a cordilheira se ilumina lentamente.

A paisagem é bonita de doer. E, de repente, lá está ele, majestoso e inconfundível, coberto de neve, lindo acima de todos os outros. Os pelinhos do meu braço se eriçaram, e me apaixonei à primeira vista pelo Everest. Mas assim: ele lá e eu cá, muito obrigada.

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Falta eletricidade em Katmandu, sobretudo à noite. Para quem está de passagem, o perrengue é uma atração a mais. A luz que há é a do farol das motos, que não param, e das lanternas e lamparinas dos ambulantes, que vendem frutas, condimentos, grãos e legumes. Os mais safos têm lanternas de luz fluorescente, e podem negociar com mais conforto, mas cortam completamente o clima imemorial.

Em frente ao templo de Ganesha havia centenas de velas e lamparinas de manteiga de iaque acessas: era dia de prestar homenagem à paquidérmica divindade. A multidão reproduzia o trânsito. Não andava e era tão compacta que mal se conseguia passar.

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A 13 quilômetros da capital fica Bhaktapur, que é como eu imaginava Katmandu: uma verdadeira cidade medieval asiática, onde ruazinhas estreitas desembocam numa grande praça de templos e palácios. É sem dúvida um dos lugares notáveis do mundo e, louvado seja Shiva, está fechado ao trânsito de automóveis.

Como todos os pontos históricos do planeta, Bhaktapur vive hoje em função do turismo, e as lojas que circundam a praça vendem artigos para estrangeiros: objetos decorativos, panos bordados, papel feito à mão, esculturas em bronze, jóias e bijuterias, delicadas pinturas em pano, casacos de cashmere e pashminas de todas as cores.

Não é difícil imaginar o tempo em que essas lojinhas eram casas ou abasteciam a população local, porque Bhaktapur está viva e bem. Compadres conversam nas escadarias dos templos pitando cigarrinhos de palha, crianças voltam da escola fazendo algazarra. Um camarada grita da rua, outro responde da janela. Vacas, cachorros e cabras convivem pacificamente com os humanos.

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Contando em quilômetros, Bhaktapur fica bem perto de Katmandu. Contando em tempo, fica muito longe. Não há trânsito na acepção literal da palavra na região, apenas engarrafamentos. Leva-se mais de uma hora para cobrir o trajeto entre as duas cidades.

Come-se muita poeira na rua e respiram-se mais emissões tóxicas do que no Túnel Rebouças. Os templos dão sua contribuição queimando incenso em quantidades industriais. Num deles, uma placa enorme informava, em inglês:

“Smoking is strictly prohibited”

A globalização chegou ao Nepal.