segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Diário de viagem: Katmandu

Para a minha geração, Katmandu nunca foi exatamente uma localização geográfica, mas um estado de espírito. Capital do Nepal escondida na cordilheira do Himalaia, ela era o destino dos sonhos de dez entre dez hippies, dos fãs de Cat Stevens e até de uma parcela dos leitores de Lobsang Rampa, picareta que fez muito sucesso nos anos 70 descrevendo a vida no Tibete. Que não é o Nepal, mas é logo ali.

Os relatos que chegavam daquele canto remoto davam conta de uma cidadezinha encantadora, cercada de campos de arroz e salpicada de templos antiqüíssimos, onde monges de cabeça raspada passavam o dia contemplando o crescimento das plantas.

Sonhei muito com aquilo lá. Depois cresci, tive que cuidar da vida e Katmandu virou apenas uma música no player. Mas ninguém é bixo-grilo impunemente. Assim é que, semana passada, desembarquei no Nepal, ansiosa por respirar o ar puro das montanhas.

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Há poucas coisas tão diferentes quanto a Katmandu idealizada e a da vida real. A cidadezinha bucólica morreu há tempos, assassinada pela explosão demográfica, por décadas de conflito armado, pela poluição e pela ocupação descontrolada.

A primeira impressão que se tem é péssima; as subseqüentes também. O país é muito pobre, mas nem por isso as construções precisavam ser tão feias. As lindas stupas que enfeitam as capas dos guias de turismo sumiram em meio às casas e prédios horripilantes, para não falar no ataque agressivo dos outdoors que cobrem todas as superfícies disponíveis. A julgar pela quantidade de anúncios, a Pepsi comprou Katmandu. Só de birra, bebi Coca-Cola.

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As ruas e estradas esburacadas são disputadas por carros, cabras, caminhões, bicicletas, pequenos ônibus, charretes, vacas sagradas e muitas, mas muitas motos, para não falar nos vendedores ambulantes, que se instalam tranqüilamente onde bem entendem.

O conceito de mão e contramão é desconhecido e os semáforos ainda não chegaram ao país, de modo que nada vai a lugar nenhum, nem mesmo as vacas, que aceitam com santa resignação a impossibilidade de exercer o seu direito de ir e vir. Boa parte da população circula de máscara, sábia providência considerando-se que, por causa da poluição, os olhos ardem, a garganta seca, o nariz fica esturricado.

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Apesar do caos e da feiúra generalizados, a viagem tem suas compensações. A praça principal continua como era há centenas de anos, o artesanato é delicado e em geral muito bonito, o povo é acolhedor. Além disso, basta sair um pouco da cidade para encontrar o Nepal que se imaginava: lá estão os campos de arroz, os camponeses às voltas com a colheita e, na linha do horizonte, os picos do Himalaia em toda a sua glória.

Para quem quer ver as montanhas de perto mas não tem tempo, preparo físico ou joelho para ir a pé, a Yeti Air faz vôos panorâmicos de uma hora por U$ 170. O horário ideal é ao nascer do sol, quando a cordilheira se ilumina lentamente.

A paisagem é bonita de doer. E, de repente, lá está ele, majestoso e inconfundível, coberto de neve, lindo acima de todos os outros. Os pelinhos do meu braço se eriçaram, e me apaixonei à primeira vista pelo Everest. Mas assim: ele lá e eu cá, muito obrigada.

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Falta eletricidade em Katmandu, sobretudo à noite. Para quem está de passagem, o perrengue é uma atração a mais. A luz que há é a do farol das motos, que não param, e das lanternas e lamparinas dos ambulantes, que vendem frutas, condimentos, grãos e legumes. Os mais safos têm lanternas de luz fluorescente, e podem negociar com mais conforto, mas cortam completamente o clima imemorial.

Em frente ao templo de Ganesha havia centenas de velas e lamparinas de manteiga de iaque acessas: era dia de prestar homenagem à paquidérmica divindade. A multidão reproduzia o trânsito. Não andava e era tão compacta que mal se conseguia passar.

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A 13 quilômetros da capital fica Bhaktapur, que é como eu imaginava Katmandu: uma verdadeira cidade medieval asiática, onde ruazinhas estreitas desembocam numa grande praça de templos e palácios. É sem dúvida um dos lugares notáveis do mundo e, louvado seja Shiva, está fechado ao trânsito de automóveis.

Como todos os pontos históricos do planeta, Bhaktapur vive hoje em função do turismo, e as lojas que circundam a praça vendem artigos para estrangeiros: objetos decorativos, panos bordados, papel feito à mão, esculturas em bronze, jóias e bijuterias, delicadas pinturas em pano, casacos de cashmere e pashminas de todas as cores.

Não é difícil imaginar o tempo em que essas lojinhas eram casas ou abasteciam a população local, porque Bhaktapur está viva e bem. Compadres conversam nas escadarias dos templos pitando cigarrinhos de palha, crianças voltam da escola fazendo algazarra. Um camarada grita da rua, outro responde da janela. Vacas, cachorros e cabras convivem pacificamente com os humanos.

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Contando em quilômetros, Bhaktapur fica bem perto de Katmandu. Contando em tempo, fica muito longe. Não há trânsito na acepção literal da palavra na região, apenas engarrafamentos. Leva-se mais de uma hora para cobrir o trajeto entre as duas cidades.

Come-se muita poeira na rua e respiram-se mais emissões tóxicas do que no Túnel Rebouças. Os templos dão sua contribuição queimando incenso em quantidades industriais. Num deles, uma placa enorme informava, em inglês:

“Smoking is strictly prohibited”

A globalização chegou ao Nepal.

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