Terça-feira, cinco e meia da tarde: estou voltando para casa. Pela janela vejo a ponta da asa e as nuvens que passam de marcha a ré. Na classe executiva da British Airways, dois proveitos não cabem num saco só, e para ir na janela é preciso viajar de costas. É uma lógica às avessas, pois quem vai no corredor nem percebe se está indo ou vindo. Não sei a velocidade a que estamos voando, não sei a nossa altitude e nem imagino qual seja a temperatura do lado de fora da aeronave, detalhes que o comandante misericordiosamente nos poupou. Até hoje não entendi porque as tripulações informam esses fatos alarmantes aos passageiros. O que é que eles podem fazer a respeito do assunto?!
Pois. O fato é que os meus dias de Índia chegaram ao fim. Aprendi coisas de que nem suspeitava e descobri um mundo interminável, um planeta à parte, que não deixou de me surpreender até o último momento.
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Andando pelo aeroporto Indira Gandhi à procura de uma caixa de correio para despachar os últimos postais, dei com uma fila de sikhs, barbudos, compenetrados, de turbante na cabeça e faca na mão. Entre eles havia homens prósperos usando ternos bem cortados, estudantes, gente do povo. Lá na frente, um inspetor igualmente sikh, com o turbante grená caprichosamente amarrado, punha cada faca num envelope, onde anotava o nome do passageiro e o número do vôo. A seu lado, um segundo inspetor, também sikh, lacrava os envelopes.Notem que “lacrar”, no caso, não era colar, fechar com fita crepe ou selo de segurança. Era lacrar mesmo, como se fazia há cem anos: selar o envelope com lacre derretido na chama de um isqueiro, e marcá-lo com um sinete.
Quando aparecia uma faca bonita os inspetores olhavam com interesse redobrado e trocavam idéias com o proprietário. Desnecessário dizer que todo o processo é extremamente lento, mas nenhum dos homens da fila me pareceu impaciente ou estressado. Um deles me explicou que os envelopes são entregues aos comandantes dos aviões, e devolvidos no aeroporto de chegada pela polícia.
Imagino que, talvez à exceção do lacre, este seja um procedimento habitual em relação a armas em geral, mas não deixa de ser extraordinário que um aeroporto movimentado como o de Nova Delhi mantenha funcionários única e exclusivamente para cuidar do embarque das facas dos sikhs, objetos de relevância religiosa, mas destituídos de finalidade prática.
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Pouco antes de dar com o registro das facas, passei pela segurança, e um dos policiais me pediu que abrisse a mala de mão depois de observar o conteúdo pelo raio-x.-- Quero ver as lentes.
Pedido razoável. Não deve ser impossível ocultar explosivos em equipamento fotográfico.
-- Ah, essa 18mm-200mm é o meu sonho! Que tal é ela? – perguntou o rapaz, revirando a lente. Fiquei comovida com a curiosidade do gesto, e mostrei a ele meus outros tesouros.
-- Olha essa aqui. É a minha favorita, macro 105mm, um tiquinho pesada, mas f2.8.
-- Posso experimentar?
E lá ficamos os dois entretidos com os brinquedos, como se estivéssemos num fotoclube qualquer.
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Os sikhs são extremamente prestativos. Nos seus templos fazem questão de oferecer água e comida a qualquer visitante, sem distinção de cor, credo ou casta, e são apenas um dos muitos paradoxos da Índia. Agora mesmo esses camaradas, cujo propósito existencial é, em teoria, servir à comunidade, estão se matando uns aos outros e tocando fogo em automóveis no estado de Haryana porque um guru que a maioria não reconhece teve a suprema ousadia de usar um turbante com as cores do Guru Nanak, que fundou a religião no século XVI.Os sikhs vão para os arranca-rabos com outros sikhs e para os confrontos com a polícia armados de bastões e de espadas. Protagonizam cenas medievais e fazem a delícia dos fotógrafos.
Manmohan Singh, o atual primeiro ministro, é sikh. Sou fã dele. É homem distintíssimo, de grande sofisticação intelectual e inquestionável visão política; basta dizer que foi o condutor da abertura econômica que, em princípios dos anos 90, botou a Índia no mapa. No entanto, como todo sikh, usa turbante 24 horas por dia, algo incompreensível para quem vive num mundo laico como o nosso. Antes de embarcar, vi um noticiário em que aparecia numa conferência internacional, com gigantescos headphones postos por cima do turbante acinzentado. Com todo o respeito, parecia o Mickey.
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Quarta-feira, oito da manhã: estou em casa! Depois de mais de um mês de clima seco, desértico, a umidade me espanta. Não é nenhuma novidade, mas é como se fosse. Na Índia, meus pés tinham a permanente sensação de pisar em poeira, por limpo que estivesse o chão; aqui, na minha casa tão caprichada e amorosamente cuidada pela Vanessa, onde cada coisa está no seu lugar e não há uma poeirinha no chão, a sensação é a de pisar numa superfície quase molhada. Nasci no Rio e vivi aqui a vida inteira, mas foi preciso experimentar o exato oposto do que sentimos na pele para perceber o que sentimos na pele.Pela janela vejo a Lagoa, linda como sempre. Sob o olhar atento dos gatos, ataco a pilha de correspondência e de contas que me espera, enquanto, lá fora, operários desmontam o palanque da festa de inauguração da Árvore de Natal.
A vida volta ao normal.
(O Globo, Segundo Caderno, 10.12.2009)