sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Enquanto isso, na Índia...

Reporta o Luis Filipe, intrépido repórter do Tim Tim no Tibet:
Resenha de imprensa e reacções oficiais

Os motins que se seguiram à partida inesperada da jornalista Cora Rónai da Índia têm assumido proporções alarmantes. Conforme já reportei, os lojistas, vendedores de rua, fabricantes de elefantinhos e mascates em geral ocuparam as ruas de Deli, queimaram carros e pneus e mantêm cercado o Palácio do Governo, bem como as embaixadas de Portugal e do Brasil. "We want Cora back!" gritam milhares de pessoas, especialmente todas as ligadas ao pequeno comércio.

O ministro das Finanças, Pranab Mukherjee, fez ontem uma declaração na televisão, assegurando que o fluxo turístico previsto para a Índia no próximo ano iria compensar largamente as perdas sofridas pelos comerciantes com a partida de Cora Rónai, mas o agressivo "pivot" da CNN-IBN afirmou imediatamente que "mais uma vez o governo estava a atirar poeira aos olhos do povo"...

O líder da oposição, L.K. Advani, atribuíu as culpas da partida de Cora Rónai ao "deselegante twitter" (na sua expressão) que lhe foi enviado pelo Vice Ministro Shashi Tharoor. "No meu tempo" disse "mandava-se uma carta em papel perfumado. E porque não foi o próprio Primeiro Ministro a escrever a Lady Cora?" perguntou incisivamente no Parlamento.

A embaixada de Portugal promoveu um bazar para os lojistas manifestantes, a fim de os aplacar, mas o Ministério do Comércio da Índia mandou todo o mundo preencher cinco requerimentos, conseguir dez certificados e entregar vinte fotografias, pelo que o estratagema não resultou e a embaixada continua cercada.

Assim como não resultou o festival de samba promovido pela embaixada do Brasil, uma vez que os manifestantes queriam ver todo o mundo pelado ("nós bem vimos na televisão, todas peladas e com plumas" afirmou um vendedor de samosas de Deli), pelo que a situação se mantém sem alterações.

A seita Dehra considera, por seu lado, que a partida de Cora Rónai se deveu à indignação da jornalista por não permitirem aos Dehra que usem o turbante com as cores do Guru Nanak. Shri Ravi Shankar (não o músico, o líder espiritual) disse que a jornalista brasileira "ficara revoltada com o declínio da espiritualidade na Índia", problema que poderia ser enfrentado através de um sério reforço das contribuições financeiras para o seu próprio movimento.

O "Business Times" de hoje é mais severo : "Big spender leaves big crisis" é a manchete. A Federação das Câmaras de Comércio da Índia manifestou de imediato o seu profundo desacordo com esta análise.

Continuaremos a informar sobre este assunto, que ameaça converter-se numa grave crise política. Consta que o Primeiro Ministro fará hoje uma alocução ao pais. Não conseguimos confirmar boatos que correm àcerca de uma alegada diligência secreta do governo indiano junto da direcção do Globo...

Ganges



Fazer muitas fotos em viagem é ótimo; mas editar depois é um trabalhão! Durante o fim-de-semana, nas pequenas folgas que os gatinhos me deram, selecionei e, em alguns casos, fiz uma edição básica (corte, luz -- tudo no Picasa) das fotos do Ganges, em Varanasi.

Ainda não acabei, nem de selecionar o que está no computador, nem o que subiu -- muitas serão eliminadas lá e cá.

O que subiu por enquanto está AQUI.

O título do álbum, Slowly down the Ganges, é homenagem ao livro do Eric Newby, que achei ótimo.

O santo sufi e a D5000




Então, há quanto tempo! Andei meio sumida, numa espécie de sabático auto-proclamado da área, mas enfim volto ao meu cantinho habitual. Como sabe quem lê o Segundo Caderno e/ou acompanha meu blog, a principal razão deste sumiço foi uma viagem à Índia que devia ter durado três semanas, depois se estendeu a um mês e, no fim, levou quase 60 dias.

Embora o país tenha justa e merecida fama no mundo da tecnologia, o que me cativou foi o seu lado low-tech; ou, para ser mais justa, a facilidade com que diversos séculos convivem num mesmo espaço. Nos vilarejos mais remotos que visitei, todos usavam celular, e muitos rapazes identificaram à primeira vista o Nokia N97, que conheciam apenas de foto.

A lenda é fato: os indianos adoram máquinas.

Antes de viajar, comprei uma Nikon D5000, então mais ou menos recém-lançada, que me fez viver boas experiências, às vezes em situações inesperadas. A poucos quilômetros de Agra fica a cidade-fantasma de Fatehpur Sikri, construída pelo imperador Akbar no Século XVI e abandonada por razões não inteiramente esclarecidas. Lá fica o túmulo do santo sufi Salim Chishti, onde se pode entrar e fazer pedidos (amarrando-se fios de linha na “renda” do mármore), mas onde não se pode fotografar.

Pois entrei com a D5000 pendurada no pescoço, como boa turista, e o celular já preparado para roubar uma foto, quando o religioso que cuida do túmulo, um rapaz na casa dos 20 anos, se empolgou:

-- Já li muito sobre essa câmera. Que tal, é tudo o que estão dizendo?

-- Bom, eu estou contente, tem funcionado bem.

-- E como é que trabalha em lugares escuros? Vai mesmo a 6400 ISO?

-- Vai, mas o ruído é inaceitável. O máximo que tenho usado é 1600, com resultados bastante bons.

-- Posso ver?

-- Claro! Repara só...

E com isso, a pedidos do próprio guardião do túmulo, saquei três fotos rápidas. Se eu soubesse que ia encontrar um colega lá dentro, tinha levado o tripé.

A mesma câmera também chamou a atenção de um dos policiais da segurança do aeroporto de Nova Delhi, que pediu para ver o equipamento. Não por medo de bomba, mas por curiosidade, mesmo: sonha com uma lente como a minha 18-200mm. O mais espantoso é que, na fila que se formou enquanto ele olhava cuidadosa e reverentemente a lente, ninguém se estressou.

Aquele é um país de milagres.


(O Globo, Revista Digital, 11.1.2010)

As fotos que fiz estão num álbum do Picasa, AQUI.

A verdadeira religião de São Francisco



Imagine uma rua muito, muito movimentada. Imaginou? Agora dobre o movimento, salpique cachorros e cabras a gosto e acrescente duas vacas que pensam profundamente na vida entre uma ponta e outra. Pronto: você está em Chandni Chowk, no coração da velha Delhi. Há gente vestida de todas as maneiras, para todos os gostos. Este aqui, da moto, vive um momento Saturday Night Fever; aquele ali, de cajado e turbante, puxando um camelo, saiu direto da Idade Média; o outro lá vai nu em pelo, com um espanador de pena de pavão numa das mãos e uma chaleira de cobre bem polido na outra.

Ahn?

Dois japoneses rápidos no gatilho sacaram fotos, mas até que eu registrasse mentalmente o maluco, ele havia sido tragado pela multidão. Foi assim que deixei de fotografar um autêntico monge jainista da linha digambara, “vestido de céu”. Mais tarde, no Hospital de Pássaros, não comi mais mosca e fotografei outro, em trajes menos minimalistas, da linha svetambara, “vestido de branco”.

“Comer mosca”, aliás, não é termo apropriado para se usar em presença de jainistas. Esta antiga religião prega que todos os seres, por minúsculos que sejam, são sagrados, e devem ser tratados com o máximo respeito. Os ortodoxos chegam a usar máscara sobre a boca para não engolir, inadvertidamente, algum insetinho que esteja passando, e limpam o chão com cuidado antes de pisar para não esmagar bichos que mal se vêem. Daí o espanador dos monges; já a chaleira é para filtrar a água, de novo para que nenhum insetinho etcetera etcetera.

* * *

As escrituras (Agamas) proíbem os jainistas de fazer mal, de caso pensado, a qualquer ser vivente, de modo que todos são vegetarianos, sendo que plantas que morrem ao ser colhidas, como os tubérculos, ficam fora do cardápio. Além disso, todos se sentem na obrigação de defender – sempre de forma não-violenta – o mundo que os cerca:

“Quem despreza ou descuida da existência da terra, do ar, do fogo, da água e da vegetação descuida da sua própria existência, a eles interligada”, disse Mahavira, o mais recente dos profetas, que viveu quinhentos anos antes de Cristo.

* * *

Este não é o único aspecto surpreendentemente moderno do Jainismo, religião cujo princípio básico é o bem-estar de cada criatura e do universo ao seu redor. Em tese, o bom jainista deve consumir apenas o necessário à sua sobrevivência, reduzindo ao mínimo o que toma da natureza.

O Jainismo não tem Deus nem deuses, santos ou anjos, e não crê no sobrenatural. A salvação da alma se alcança por meio de uma vida correta, a partir de cinco princípios fundamentais: praticar a não-violência acima de tudo, não ter apego a nada, não mentir, não roubar e ser casto, o que, para efeitos práticos entre leigos, significa fidelidade ao parceiro ou parceira. Como filosofia de vida, poderia ser uma espécie de Budismo hardcore, se não antecedesse o Budismo em sabe-se lá quantos séculos.

“Sabe-se lá” não é figura de retórica. Muito pouco é conhecido sobre os primórdios da religião, assim como da vida e das palavras do Mahavira e dos outros 23 tirthankaras, homens que alcançaram a perfeição. Como os monges, já naquela época, não podiam ter bens materiais, não havia com o que escrever. Tudo era memorizado e transmitido oralmente, o que não ajudava na preservação da verdade dos fatos; mas, para piorar, aí pelo ano 350 da nossa era, deu-se uma fome terrível que matou quase todos os monges, e lá se foi a História. Típico problema jainista!

* * *

Outro típico problema jainista: há algum tempo, uma praga de formigas atacou as fundações de um templo e quase pôs tudo abaixo. Um time de biólogos e de engenheiros quase tão numeroso quanto as formigas levou meses para descobrir como resolver o problema sem machucar ninguém. No fim, o curso dos insetos foi desviado a um custo astronômico e, entre mortos e feridos, salvaram-se todos.

* * *

Bom. Lá no começo falei do Hospital de Pássaros. Pois foi graças ao hospital, que tinha muita vontade de conhecer, que descobri esta religião tão simpática. Os jainistas dedicam muito do seu tempo e dinheiro aos abrigos de animais, e o Hospital de Pássaros de Delhi é modelar. Tem três andares, atende a uma média de 60 pacientes por dia e se divide em “UTIs”, gaiolinhas individuais onde ficam as aves mais necessitadas de atenção, e “enfermarias”, onde os convalescentes convivem com outros da sua espécie. As rapineiras, por serem carnívoras, são tratadas em separado e, enquanto permanecem internadas, têm de se adaptar às normas vegetarianas da casa, sendo alimentadas com queijo.

Os problemas mais comuns são choques com vidraças e ventiladores de teto, e ataques de águias, gaviões e milhafres, mas imagino que não haja doença de ave que não chegue às mãos dos competentes veterinários. O índice de cura registrado pelo hospital está em fantásticos 75%!

Uma vez por semana, as portas das enfermarias são abertas, junto com uma janela no teto. Quem estiver bem, voa embora, ainda que boa parte dos pássaros fique pela área: o rango, além de farto, parece ser bom. O Hospital de Pássaros é mantido por doações, e atende também aves de particulares – mas não as devolve nunca quando ficam boas, porque, para os jainistas, liberdade é para todos, com e sem penas.


(O Globo, Segundo Caderno, 7.1.2010)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Turbantes, facas e janelas: volta ao lar



Terça-feira, cinco e meia da tarde: estou voltando para casa. Pela janela vejo a ponta da asa e as nuvens que passam de marcha a ré. Na classe executiva da British Airways, dois proveitos não cabem num saco só, e para ir na janela é preciso viajar de costas. É uma lógica às avessas, pois quem vai no corredor nem percebe se está indo ou vindo. Não sei a velocidade a que estamos voando, não sei a nossa altitude e nem imagino qual seja a temperatura do lado de fora da aeronave, detalhes que o comandante misericordiosamente nos poupou. Até hoje não entendi porque as tripulações informam esses fatos alarmantes aos passageiros. O que é que eles podem fazer a respeito do assunto?!

Pois. O fato é que os meus dias de Índia chegaram ao fim. Aprendi coisas de que nem suspeitava e descobri um mundo interminável, um planeta à parte, que não deixou de me surpreender até o último momento.

* * *

Andando pelo aeroporto Indira Gandhi à procura de uma caixa de correio para despachar os últimos postais, dei com uma fila de sikhs, barbudos, compenetrados, de turbante na cabeça e faca na mão. Entre eles havia homens prósperos usando ternos bem cortados, estudantes, gente do povo. Lá na frente, um inspetor igualmente sikh, com o turbante grená caprichosamente amarrado, punha cada faca num envelope, onde anotava o nome do passageiro e o número do vôo. A seu lado, um segundo inspetor, também sikh, lacrava os envelopes.

Notem que “lacrar”, no caso, não era colar, fechar com fita crepe ou selo de segurança. Era lacrar mesmo, como se fazia há cem anos: selar o envelope com lacre derretido na chama de um isqueiro, e marcá-lo com um sinete.

Quando aparecia uma faca bonita os inspetores olhavam com interesse redobrado e trocavam idéias com o proprietário. Desnecessário dizer que todo o processo é extremamente lento, mas nenhum dos homens da fila me pareceu impaciente ou estressado. Um deles me explicou que os envelopes são entregues aos comandantes dos aviões, e devolvidos no aeroporto de chegada pela polícia.

Imagino que, talvez à exceção do lacre, este seja um procedimento habitual em relação a armas em geral, mas não deixa de ser extraordinário que um aeroporto movimentado como o de Nova Delhi mantenha funcionários única e exclusivamente para cuidar do embarque das facas dos sikhs, objetos de relevância religiosa, mas destituídos de finalidade prática.

* * *

Pouco antes de dar com o registro das facas, passei pela segurança, e um dos policiais me pediu que abrisse a mala de mão depois de observar o conteúdo pelo raio-x.

-- Quero ver as lentes.

Pedido razoável. Não deve ser impossível ocultar explosivos em equipamento fotográfico.

-- Ah, essa 18mm-200mm é o meu sonho! Que tal é ela? – perguntou o rapaz, revirando a lente. Fiquei comovida com a curiosidade do gesto, e mostrei a ele meus outros tesouros.

-- Olha essa aqui. É a minha favorita, macro 105mm, um tiquinho pesada, mas f2.8.

-- Posso experimentar?

E lá ficamos os dois entretidos com os brinquedos, como se estivéssemos num fotoclube qualquer.

* * *

Os sikhs são extremamente prestativos. Nos seus templos fazem questão de oferecer água e comida a qualquer visitante, sem distinção de cor, credo ou casta, e são apenas um dos muitos paradoxos da Índia. Agora mesmo esses camaradas, cujo propósito existencial é, em teoria, servir à comunidade, estão se matando uns aos outros e tocando fogo em automóveis no estado de Haryana porque um guru que a maioria não reconhece teve a suprema ousadia de usar um turbante com as cores do Guru Nanak, que fundou a religião no século XVI.

Os sikhs vão para os arranca-rabos com outros sikhs e para os confrontos com a polícia armados de bastões e de espadas. Protagonizam cenas medievais e fazem a delícia dos fotógrafos.

Manmohan Singh, o atual primeiro ministro, é sikh. Sou fã dele. É homem distintíssimo, de grande sofisticação intelectual e inquestionável visão política; basta dizer que foi o condutor da abertura econômica que, em princípios dos anos 90, botou a Índia no mapa. No entanto, como todo sikh, usa turbante 24 horas por dia, algo incompreensível para quem vive num mundo laico como o nosso. Antes de embarcar, vi um noticiário em que aparecia numa conferência internacional, com gigantescos headphones postos por cima do turbante acinzentado. Com todo o respeito, parecia o Mickey.

* * *

Quarta-feira, oito da manhã: estou em casa! Depois de mais de um mês de clima seco, desértico, a umidade me espanta. Não é nenhuma novidade, mas é como se fosse. Na Índia, meus pés tinham a permanente sensação de pisar em poeira, por limpo que estivesse o chão; aqui, na minha casa tão caprichada e amorosamente cuidada pela Vanessa, onde cada coisa está no seu lugar e não há uma poeirinha no chão, a sensação é a de pisar numa superfície quase molhada. Nasci no Rio e vivi aqui a vida inteira, mas foi preciso experimentar o exato oposto do que sentimos na pele para perceber o que sentimos na pele.

Pela janela vejo a Lagoa, linda como sempre. Sob o olhar atento dos gatos, ataco a pilha de correspondência e de contas que me espera, enquanto, lá fora, operários desmontam o palanque da festa de inauguração da Árvore de Natal.

A vida volta ao normal.


(O Globo, Segundo Caderno, 10.12.2009)

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Enterre meu coração no Sarojini Market

O Sarojini Market fica perto de casa, e serve à vizinhança. É uma espécie de Old Delhi para principiantes, com uma quantidade de coisas à venda, de alfaces a celulares, mas sem carros, motos ou tuc-tucs circulando entre as pessoas. Não consigo voltar de lá de mãos abanando nem quando vou fotografar, como foi o caso ontem: há sempre uma tentação irresistível no caminho. Aliás, se há uma coisa que não falta na Índia é tentação irresistível.

Este é o país mais perigoso em que já estive, porque tudo é pelo menos interessante e quase sempre barato e, em tese, tudo está ao nosso alcance, ainda mais quando se convertem rúpias em reais e/ou se comparam os preços com os praticados no Rio. O problema é que de real em real se desconstrói, rapidamente, uma boa conta bancária.

Já me proibi de comprar elefantinhos, por exemplo, mas a cada momento me aparece um diferente. Resultado: uma coleção de todos os feitios, que nem sei bem como vou levar na mala. Com rodas e sem rodas; de madeira lisa, madeira esculpida e madeira pintada; de barro; de mármore, com entalhe e sem; de jade... Até de bronze tenho um, ainda que minúsculo.

Pulseiras? Ora, por quem sois. Já tenho de miçangas, de osso de camelo, de prata, bronze, madeira, laca, vidro e madrepérola. E colares de olho de tigre e coral e lápis lazuli, e brincos de todas as cores e feitios, e caixinhas coloridas de madeira e de papel machê; mais caderninhos de papel artesanal com brilhos e pedacinhos de folhas, e miniaturas, e colchas do Rajastão e um xale de seda de Varanasi.

* * *

Dizem que as pessoas costumam passar por grandes transformações espirituais quando vêm à Índia, e é verdade. Recebi um caboclo comprador e fico doida quando saio na rua, de tantas, tão lindas e tão acessíveis que são as mercadorias.

* * *

Lá vinha eu com uns pacotinhos no Sarojini Market quando um vendedor me agarrou no meio da rua:

-- Shopping bag? Shopping bag? Shopping bag?

Ele tinha umas sacolas de pano enormes, coloridas, com ziper e alças acolchoadas. Pedia 200 rúpias, o equivalente a R$ 7,40 pela última cotação. Agora, que já fui devidamente treinada pela minha amiga Margarida Barahona, não sou mais a otária completa de antes; sou apenas meio otária. Dei-lhe, pois, um passa-fora, e disse que estava maluco. Pediu 100. Topei.

A sacola é um primor de mal acabada, mas é grande, prática e nela couberam todos os pacotinhos. Poucos metros adiante, outro vendedor, com sacolas iguais, me perguntou quanto havia dado nela. Diante da resposta, ofereceu as suas por 50, ou seja, menos de dois reais. Se eu insistisse um pouco, levava por 30.

* * *

Nova Delhi é seca, fica perto do deserto, e uma camada permanente e insidiosa de poeira cobre tudo, o tempo todo, somando-se à poluição tradicional que conhecemos tão bem. Depois de algumas horas na rua, por frio que esteja, a garganta se ressente, e bate uma sede danada. Talvez por isso se encontrem tantos vendedores de limonada espalhados pela cidade.

Parei num deles, paguei dez rúpias e fiquei observando enquanto ele acrescentava ao líquido de uma garrafinha fartas colheradas de açúcar. Lá muito limpa a coisa não era, mas tinha uma cara boa, e bebi um gole com grande gosto. Foi um choque só: as colheradas não eram de açúcar, mas de... sal!

Bleargh!!!

Tentei beber mais um pouco à guisa de estudo antropológico-gastronômico, mas aquela porcaria era de fato nojenta e intragável. E lá fiquei zanzando pelo mercado feito uma barata tonta, com aquele gosto horrível na boca e o copo de plástico na mão, à procura de uma lata de lixo. Como em quase todo o resto da cidade (e quiçá do país) não há latas de lixo no Sarojini Market. Parei na loja de celulares onde ia deixar o velho N95 para trocar de casca. Dei o copo para o vendedor:

-- Você podia jogar isso fora, por favor?

O moço olhou para mim com cara de ponto de interrogação e atirou tudo, copo e limonada, na rua em frente. Não acertou ninguém por pura sorte.

* * *

Este país é doido, sujo, barulhento e confuso, mas é muito, muito divertido. Até porque basta andar um quarteirão ou atravessar a rua, e logo se estará num lugar completamente diferente daquele em que se estava. A zorra de Old Delhi e o paraíso de Lodhi Gardens, o mais lindo dos jardins urbanos, não são opostos, mas complementares.

O Sarojini Market, que vende lado a lado jóias, celulares caríssimos e sacolas artesanais a preço vil, tudo coberto pela mesma poeira ancestral, é uma espécie de resumo da ópera.

* * *

Tenho pensado muito na metáfora do sapo na fervura em relação à violência brasileira, em geral, e carioca, em particular. É assustador notar, daqui de longe, a temperatura da água com que já nos acostumamos. A imagem do ônibus em chamas, anteontem, que para nós só não foi inteiramente rotineira por ter Copacabana de fundo, adquire uma dimensão apocalíptica vista da Índia, país violento no atacado, mas pacífico no varejo. Uma das melhores lembranças que vou levar comigo é a tranqüilidade de sair de casa e andar com as minhas câmeras e as minhas lentes por toda a parte, mesmo nas maiores multidões, sem qualquer medo de ser assaltada.

Goa: vacas profanas e padres brâmanes

O jantar da Associação de Professores de Português foi um evento simpático. Reuniu cerca de quarenta pessoas, entre professores, maridos e esposas, que se divertiram conversando em grupinhos, bebendo vinho português e comendo risoles. A associação aproveitou a ocasião para eleger o melhor professor (no caso, professora) e, no fim da noite, todos receberam CDs de bossa-nova. No cardápio, além da discussão dos eternos problemas da classe, lombo de porco à moda e bacalhoada, com sorvete de coco de sobremesa. Tudo muito familiar e corriqueiro, exceto pelo fato de estarmos a cinco horas e meia de Portugal, ou sete horas e meia do Brasil.

Goa fica na costa Leste da Índia, mas como geografia nem sempre é destino, vive, culturalmente, num vago ponto latino. Há nomes portugueses espalhados por todo o estado e, em alguns bairros da capital, Pangim, o português continua sendo a língua de casa, embora os idiomas predominantes sejam o konkani e o inglês.

O grande artista local, hoje verdadeira instituição indiana, é o desenhista Mario Miranda, goes de quatro costados e fala portuguesa; o estilista que pôs Goa no mapa da moda é Wendell Rodricks (Rodrigues), que veste os astros de Bollywood em linhos e algodões elegantes e despojados, com um viés mediterrâneo, na contramão dos brilhos e paetês orientais.

Ao contrário das tradicionais casas indianas, que terminam em terraços, as de Goa têm telhados de quatro águas, diretamente importados de Portugal; mas contribuíram para a arquitetura lusotropical (na definição de Gilberto Freyre) com os alpendres, criados para proteger o interior do aguaceiro das monções. Em frente à entrada, em vez dos habituais altares para divindades hindus, têm pequenos santuários encimados pela cruz, onde o santo de devoção é enfeitado pelas mesmas guirlandas alaranjadas que, no resto do país, enfeitam os Ganeshas, Shivas e Laksmis.

* * *

Há cruzes e igrejas por toda a parte, até no meio da selva. Quando a antiga capital mudou-se para o litoral em 1843, as casas foram desmontadas para que se aproveitassem as pedras, raras na região. As antigas igrejas, porém, permaneceram intocadas. Hoje são lindas de se ver, cercadas de árvores por todos os lados, e parecem o cenário perfeito para um filme de Indiana Jones.

* * *

Como em Portugal, os nomes de várias ruas vêm escritos em placas de azulejos; o chão é imaculadamente limpo, ao contrário do que se vê pelo resto da Índia, onde jogar lixo porta afora é tradição desde os tempos em que o lixo era orgânico e, por conseguinte, ótima comida para animais. Por falar nisso, não se vêem muitas vacas fora do pasto, e as pobres pouco têm de sagradas: um bom bife é apreciado em Goa, assim como a carne de porco, coisa que praticamente não se come em outra parte do subcontinente.

As mulheres usam cabelo curto, andam de salto e vestem-se com roupas ocidentais, ainda que bem-comportadas. Se não fosse pela cor da pele e pela fisionomia, podiam muito bem estar no interior de Portugal ou numa cidadezinha qualquer em Minas ou no Nordeste. A linguagem corporal local é cem por cento ocidental. Homens e mulheres se dão as mãos e se beijam quando se encontram ou se despedem; e ninguém se acocora ou se senta no chão, como é normal entre os demais indianos. No final da tarde, todos trazem cadeiras para a porta de casa, para aproveitar a fresca e pôr a conversa em dia.

* * *

Apesar do sotaque português, Goa tem muito mais de Brasil do que de Portugal. A vegetação é parecidíssima com a nossa, e a colonização portuguesa tratou de torná-las ainda mais semelhantes, levando para o Brasil manga e coco e trazendo para a Índia goiaba, mamão, caju, abacaxi e tomate, para não falar na onipresente pimenta malagueta.

O caju merece uma observação à parte. As castanhas são preparadas de diversas maneiras, algumas horrivelmente apimentadas; as passas e o caju em calda ainda não foram descobertos, assim como o suco e a cajuína. A explicação mais provável que encontro para essas graves lacunas gastronômicas é o aproveitamento das frutas para a produção de uma cachaça forte e cheirosa chamada feni que, segundo amigos que entendem do assunto, é o que há de bom.

* * *

O calor e as praias atraem gente de perna de fora do mundo inteiro. Calingute, que fica a meia hora de Pangim, podia ser Búzios, Trancoso ou Porto de Galinhas: concentra uma quantidade de pizzarias, restaurantes e botecos, abertos dia e noite. Entre uns e outros, dezenas de lojinhas de roupa de praia e cacarecos indianos, com a diferença que os donos não são argentinos, e os cacarecos indianos vêm ali da esquina. Na moda para estrangeiros, prevalece o hippie fino universal.

* * *

Goa foi colônia portuguesa até 1961. Com a independência, o português deixou de ser língua obrigatória. É falado hoje apenas pelos goeses quatrocentões e, se o estado continuar sendo ignorado pelos portugueses -- e, sobretudo, pelos brasileiros -- logo dará lugar ao inglês, que é o que os indianos usam para se comunicar mesmo entre si, quando vêm de estados diferentes.

Ainda assim, acho que mais importante do que a língua é a cultura como herança comum. Não é tanto o português que faz dos goeses os indianos exóticos que são, mas um jeito de ser que se reconhece na Bahia, no Rio ou em Luanda, em Cabo Verde ou em Moçambique. Vai ser uma pena se, um dia, Goa deixar de ser a mistura que é: afinal, onde mais se pode encontrar um padre brâmane?