sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A verdadeira religião de São Francisco



Imagine uma rua muito, muito movimentada. Imaginou? Agora dobre o movimento, salpique cachorros e cabras a gosto e acrescente duas vacas que pensam profundamente na vida entre uma ponta e outra. Pronto: você está em Chandni Chowk, no coração da velha Delhi. Há gente vestida de todas as maneiras, para todos os gostos. Este aqui, da moto, vive um momento Saturday Night Fever; aquele ali, de cajado e turbante, puxando um camelo, saiu direto da Idade Média; o outro lá vai nu em pelo, com um espanador de pena de pavão numa das mãos e uma chaleira de cobre bem polido na outra.

Ahn?

Dois japoneses rápidos no gatilho sacaram fotos, mas até que eu registrasse mentalmente o maluco, ele havia sido tragado pela multidão. Foi assim que deixei de fotografar um autêntico monge jainista da linha digambara, “vestido de céu”. Mais tarde, no Hospital de Pássaros, não comi mais mosca e fotografei outro, em trajes menos minimalistas, da linha svetambara, “vestido de branco”.

“Comer mosca”, aliás, não é termo apropriado para se usar em presença de jainistas. Esta antiga religião prega que todos os seres, por minúsculos que sejam, são sagrados, e devem ser tratados com o máximo respeito. Os ortodoxos chegam a usar máscara sobre a boca para não engolir, inadvertidamente, algum insetinho que esteja passando, e limpam o chão com cuidado antes de pisar para não esmagar bichos que mal se vêem. Daí o espanador dos monges; já a chaleira é para filtrar a água, de novo para que nenhum insetinho etcetera etcetera.

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As escrituras (Agamas) proíbem os jainistas de fazer mal, de caso pensado, a qualquer ser vivente, de modo que todos são vegetarianos, sendo que plantas que morrem ao ser colhidas, como os tubérculos, ficam fora do cardápio. Além disso, todos se sentem na obrigação de defender – sempre de forma não-violenta – o mundo que os cerca:

“Quem despreza ou descuida da existência da terra, do ar, do fogo, da água e da vegetação descuida da sua própria existência, a eles interligada”, disse Mahavira, o mais recente dos profetas, que viveu quinhentos anos antes de Cristo.

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Este não é o único aspecto surpreendentemente moderno do Jainismo, religião cujo princípio básico é o bem-estar de cada criatura e do universo ao seu redor. Em tese, o bom jainista deve consumir apenas o necessário à sua sobrevivência, reduzindo ao mínimo o que toma da natureza.

O Jainismo não tem Deus nem deuses, santos ou anjos, e não crê no sobrenatural. A salvação da alma se alcança por meio de uma vida correta, a partir de cinco princípios fundamentais: praticar a não-violência acima de tudo, não ter apego a nada, não mentir, não roubar e ser casto, o que, para efeitos práticos entre leigos, significa fidelidade ao parceiro ou parceira. Como filosofia de vida, poderia ser uma espécie de Budismo hardcore, se não antecedesse o Budismo em sabe-se lá quantos séculos.

“Sabe-se lá” não é figura de retórica. Muito pouco é conhecido sobre os primórdios da religião, assim como da vida e das palavras do Mahavira e dos outros 23 tirthankaras, homens que alcançaram a perfeição. Como os monges, já naquela época, não podiam ter bens materiais, não havia com o que escrever. Tudo era memorizado e transmitido oralmente, o que não ajudava na preservação da verdade dos fatos; mas, para piorar, aí pelo ano 350 da nossa era, deu-se uma fome terrível que matou quase todos os monges, e lá se foi a História. Típico problema jainista!

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Outro típico problema jainista: há algum tempo, uma praga de formigas atacou as fundações de um templo e quase pôs tudo abaixo. Um time de biólogos e de engenheiros quase tão numeroso quanto as formigas levou meses para descobrir como resolver o problema sem machucar ninguém. No fim, o curso dos insetos foi desviado a um custo astronômico e, entre mortos e feridos, salvaram-se todos.

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Bom. Lá no começo falei do Hospital de Pássaros. Pois foi graças ao hospital, que tinha muita vontade de conhecer, que descobri esta religião tão simpática. Os jainistas dedicam muito do seu tempo e dinheiro aos abrigos de animais, e o Hospital de Pássaros de Delhi é modelar. Tem três andares, atende a uma média de 60 pacientes por dia e se divide em “UTIs”, gaiolinhas individuais onde ficam as aves mais necessitadas de atenção, e “enfermarias”, onde os convalescentes convivem com outros da sua espécie. As rapineiras, por serem carnívoras, são tratadas em separado e, enquanto permanecem internadas, têm de se adaptar às normas vegetarianas da casa, sendo alimentadas com queijo.

Os problemas mais comuns são choques com vidraças e ventiladores de teto, e ataques de águias, gaviões e milhafres, mas imagino que não haja doença de ave que não chegue às mãos dos competentes veterinários. O índice de cura registrado pelo hospital está em fantásticos 75%!

Uma vez por semana, as portas das enfermarias são abertas, junto com uma janela no teto. Quem estiver bem, voa embora, ainda que boa parte dos pássaros fique pela área: o rango, além de farto, parece ser bom. O Hospital de Pássaros é mantido por doações, e atende também aves de particulares – mas não as devolve nunca quando ficam boas, porque, para os jainistas, liberdade é para todos, com e sem penas.


(O Globo, Segundo Caderno, 7.1.2010)

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