sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Enquanto isso, na Índia...

Reporta o Luis Filipe, intrépido repórter do Tim Tim no Tibet:
Resenha de imprensa e reacções oficiais

Os motins que se seguiram à partida inesperada da jornalista Cora Rónai da Índia têm assumido proporções alarmantes. Conforme já reportei, os lojistas, vendedores de rua, fabricantes de elefantinhos e mascates em geral ocuparam as ruas de Deli, queimaram carros e pneus e mantêm cercado o Palácio do Governo, bem como as embaixadas de Portugal e do Brasil. "We want Cora back!" gritam milhares de pessoas, especialmente todas as ligadas ao pequeno comércio.

O ministro das Finanças, Pranab Mukherjee, fez ontem uma declaração na televisão, assegurando que o fluxo turístico previsto para a Índia no próximo ano iria compensar largamente as perdas sofridas pelos comerciantes com a partida de Cora Rónai, mas o agressivo "pivot" da CNN-IBN afirmou imediatamente que "mais uma vez o governo estava a atirar poeira aos olhos do povo"...

O líder da oposição, L.K. Advani, atribuíu as culpas da partida de Cora Rónai ao "deselegante twitter" (na sua expressão) que lhe foi enviado pelo Vice Ministro Shashi Tharoor. "No meu tempo" disse "mandava-se uma carta em papel perfumado. E porque não foi o próprio Primeiro Ministro a escrever a Lady Cora?" perguntou incisivamente no Parlamento.

A embaixada de Portugal promoveu um bazar para os lojistas manifestantes, a fim de os aplacar, mas o Ministério do Comércio da Índia mandou todo o mundo preencher cinco requerimentos, conseguir dez certificados e entregar vinte fotografias, pelo que o estratagema não resultou e a embaixada continua cercada.

Assim como não resultou o festival de samba promovido pela embaixada do Brasil, uma vez que os manifestantes queriam ver todo o mundo pelado ("nós bem vimos na televisão, todas peladas e com plumas" afirmou um vendedor de samosas de Deli), pelo que a situação se mantém sem alterações.

A seita Dehra considera, por seu lado, que a partida de Cora Rónai se deveu à indignação da jornalista por não permitirem aos Dehra que usem o turbante com as cores do Guru Nanak. Shri Ravi Shankar (não o músico, o líder espiritual) disse que a jornalista brasileira "ficara revoltada com o declínio da espiritualidade na Índia", problema que poderia ser enfrentado através de um sério reforço das contribuições financeiras para o seu próprio movimento.

O "Business Times" de hoje é mais severo : "Big spender leaves big crisis" é a manchete. A Federação das Câmaras de Comércio da Índia manifestou de imediato o seu profundo desacordo com esta análise.

Continuaremos a informar sobre este assunto, que ameaça converter-se numa grave crise política. Consta que o Primeiro Ministro fará hoje uma alocução ao pais. Não conseguimos confirmar boatos que correm àcerca de uma alegada diligência secreta do governo indiano junto da direcção do Globo...

Ganges



Fazer muitas fotos em viagem é ótimo; mas editar depois é um trabalhão! Durante o fim-de-semana, nas pequenas folgas que os gatinhos me deram, selecionei e, em alguns casos, fiz uma edição básica (corte, luz -- tudo no Picasa) das fotos do Ganges, em Varanasi.

Ainda não acabei, nem de selecionar o que está no computador, nem o que subiu -- muitas serão eliminadas lá e cá.

O que subiu por enquanto está AQUI.

O título do álbum, Slowly down the Ganges, é homenagem ao livro do Eric Newby, que achei ótimo.

O santo sufi e a D5000




Então, há quanto tempo! Andei meio sumida, numa espécie de sabático auto-proclamado da área, mas enfim volto ao meu cantinho habitual. Como sabe quem lê o Segundo Caderno e/ou acompanha meu blog, a principal razão deste sumiço foi uma viagem à Índia que devia ter durado três semanas, depois se estendeu a um mês e, no fim, levou quase 60 dias.

Embora o país tenha justa e merecida fama no mundo da tecnologia, o que me cativou foi o seu lado low-tech; ou, para ser mais justa, a facilidade com que diversos séculos convivem num mesmo espaço. Nos vilarejos mais remotos que visitei, todos usavam celular, e muitos rapazes identificaram à primeira vista o Nokia N97, que conheciam apenas de foto.

A lenda é fato: os indianos adoram máquinas.

Antes de viajar, comprei uma Nikon D5000, então mais ou menos recém-lançada, que me fez viver boas experiências, às vezes em situações inesperadas. A poucos quilômetros de Agra fica a cidade-fantasma de Fatehpur Sikri, construída pelo imperador Akbar no Século XVI e abandonada por razões não inteiramente esclarecidas. Lá fica o túmulo do santo sufi Salim Chishti, onde se pode entrar e fazer pedidos (amarrando-se fios de linha na “renda” do mármore), mas onde não se pode fotografar.

Pois entrei com a D5000 pendurada no pescoço, como boa turista, e o celular já preparado para roubar uma foto, quando o religioso que cuida do túmulo, um rapaz na casa dos 20 anos, se empolgou:

-- Já li muito sobre essa câmera. Que tal, é tudo o que estão dizendo?

-- Bom, eu estou contente, tem funcionado bem.

-- E como é que trabalha em lugares escuros? Vai mesmo a 6400 ISO?

-- Vai, mas o ruído é inaceitável. O máximo que tenho usado é 1600, com resultados bastante bons.

-- Posso ver?

-- Claro! Repara só...

E com isso, a pedidos do próprio guardião do túmulo, saquei três fotos rápidas. Se eu soubesse que ia encontrar um colega lá dentro, tinha levado o tripé.

A mesma câmera também chamou a atenção de um dos policiais da segurança do aeroporto de Nova Delhi, que pediu para ver o equipamento. Não por medo de bomba, mas por curiosidade, mesmo: sonha com uma lente como a minha 18-200mm. O mais espantoso é que, na fila que se formou enquanto ele olhava cuidadosa e reverentemente a lente, ninguém se estressou.

Aquele é um país de milagres.


(O Globo, Revista Digital, 11.1.2010)

As fotos que fiz estão num álbum do Picasa, AQUI.

A verdadeira religião de São Francisco



Imagine uma rua muito, muito movimentada. Imaginou? Agora dobre o movimento, salpique cachorros e cabras a gosto e acrescente duas vacas que pensam profundamente na vida entre uma ponta e outra. Pronto: você está em Chandni Chowk, no coração da velha Delhi. Há gente vestida de todas as maneiras, para todos os gostos. Este aqui, da moto, vive um momento Saturday Night Fever; aquele ali, de cajado e turbante, puxando um camelo, saiu direto da Idade Média; o outro lá vai nu em pelo, com um espanador de pena de pavão numa das mãos e uma chaleira de cobre bem polido na outra.

Ahn?

Dois japoneses rápidos no gatilho sacaram fotos, mas até que eu registrasse mentalmente o maluco, ele havia sido tragado pela multidão. Foi assim que deixei de fotografar um autêntico monge jainista da linha digambara, “vestido de céu”. Mais tarde, no Hospital de Pássaros, não comi mais mosca e fotografei outro, em trajes menos minimalistas, da linha svetambara, “vestido de branco”.

“Comer mosca”, aliás, não é termo apropriado para se usar em presença de jainistas. Esta antiga religião prega que todos os seres, por minúsculos que sejam, são sagrados, e devem ser tratados com o máximo respeito. Os ortodoxos chegam a usar máscara sobre a boca para não engolir, inadvertidamente, algum insetinho que esteja passando, e limpam o chão com cuidado antes de pisar para não esmagar bichos que mal se vêem. Daí o espanador dos monges; já a chaleira é para filtrar a água, de novo para que nenhum insetinho etcetera etcetera.

* * *

As escrituras (Agamas) proíbem os jainistas de fazer mal, de caso pensado, a qualquer ser vivente, de modo que todos são vegetarianos, sendo que plantas que morrem ao ser colhidas, como os tubérculos, ficam fora do cardápio. Além disso, todos se sentem na obrigação de defender – sempre de forma não-violenta – o mundo que os cerca:

“Quem despreza ou descuida da existência da terra, do ar, do fogo, da água e da vegetação descuida da sua própria existência, a eles interligada”, disse Mahavira, o mais recente dos profetas, que viveu quinhentos anos antes de Cristo.

* * *

Este não é o único aspecto surpreendentemente moderno do Jainismo, religião cujo princípio básico é o bem-estar de cada criatura e do universo ao seu redor. Em tese, o bom jainista deve consumir apenas o necessário à sua sobrevivência, reduzindo ao mínimo o que toma da natureza.

O Jainismo não tem Deus nem deuses, santos ou anjos, e não crê no sobrenatural. A salvação da alma se alcança por meio de uma vida correta, a partir de cinco princípios fundamentais: praticar a não-violência acima de tudo, não ter apego a nada, não mentir, não roubar e ser casto, o que, para efeitos práticos entre leigos, significa fidelidade ao parceiro ou parceira. Como filosofia de vida, poderia ser uma espécie de Budismo hardcore, se não antecedesse o Budismo em sabe-se lá quantos séculos.

“Sabe-se lá” não é figura de retórica. Muito pouco é conhecido sobre os primórdios da religião, assim como da vida e das palavras do Mahavira e dos outros 23 tirthankaras, homens que alcançaram a perfeição. Como os monges, já naquela época, não podiam ter bens materiais, não havia com o que escrever. Tudo era memorizado e transmitido oralmente, o que não ajudava na preservação da verdade dos fatos; mas, para piorar, aí pelo ano 350 da nossa era, deu-se uma fome terrível que matou quase todos os monges, e lá se foi a História. Típico problema jainista!

* * *

Outro típico problema jainista: há algum tempo, uma praga de formigas atacou as fundações de um templo e quase pôs tudo abaixo. Um time de biólogos e de engenheiros quase tão numeroso quanto as formigas levou meses para descobrir como resolver o problema sem machucar ninguém. No fim, o curso dos insetos foi desviado a um custo astronômico e, entre mortos e feridos, salvaram-se todos.

* * *

Bom. Lá no começo falei do Hospital de Pássaros. Pois foi graças ao hospital, que tinha muita vontade de conhecer, que descobri esta religião tão simpática. Os jainistas dedicam muito do seu tempo e dinheiro aos abrigos de animais, e o Hospital de Pássaros de Delhi é modelar. Tem três andares, atende a uma média de 60 pacientes por dia e se divide em “UTIs”, gaiolinhas individuais onde ficam as aves mais necessitadas de atenção, e “enfermarias”, onde os convalescentes convivem com outros da sua espécie. As rapineiras, por serem carnívoras, são tratadas em separado e, enquanto permanecem internadas, têm de se adaptar às normas vegetarianas da casa, sendo alimentadas com queijo.

Os problemas mais comuns são choques com vidraças e ventiladores de teto, e ataques de águias, gaviões e milhafres, mas imagino que não haja doença de ave que não chegue às mãos dos competentes veterinários. O índice de cura registrado pelo hospital está em fantásticos 75%!

Uma vez por semana, as portas das enfermarias são abertas, junto com uma janela no teto. Quem estiver bem, voa embora, ainda que boa parte dos pássaros fique pela área: o rango, além de farto, parece ser bom. O Hospital de Pássaros é mantido por doações, e atende também aves de particulares – mas não as devolve nunca quando ficam boas, porque, para os jainistas, liberdade é para todos, com e sem penas.


(O Globo, Segundo Caderno, 7.1.2010)